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sábado, 19 de janeiro de 2013

É a natureza humana uma barreira ao socialismo?

John Molyneux

Nota do tradutor
Este texto tenta responder à idéia amplamente presente no senso comum e na ideologia dominante de que qualquer tentativa de transformação da sociedade atual estaria fadada ao fracasso, por causa da natureza egoísta e avarenta do ser humano. Como observa o próprio autor trata-se da mais "comum e contundente das objeções feitas ao socialismo (…) diante da qual muitos políticos e intelectuais recuam".
John Molyneux escreve sobre o tema com clareza e simplicidade, evitando porém os simplismos. Certamente muitos de seus argumentos mereceriam ser aprofundados. Mas Molyneux consegue plenamente o seu objetivo: fornecer uma arma para a luta de idéias e, portanto, para a luta política cotidiana.
Nestes tempos em que o capitalismo, na quarta-feira de cinzas da euforia pós-queda do muro de Berlim, passa por uma crise inesperada e de desdobramentos ainda imprevisíveis, atingindo em cheio os Tigres da Ásia que até há pouco tempo eram a menina-dos-olhos dos defensores do capital, o debate sobre a necessidade e a possibilidade de uma autêntica sociedade socialista - não as caricaturas grotescas dos regimes de Stalin ou Mao - é mais atual do que nunca.
      Trata-se de retomar a ofensiva contra o capitalismo, na prática e no plano das idéias. Este texto, sem dúvida, é uma contribuição para essa luta.


O argumento anti-socialista

O socialismo é um belo ideal, mas é irrealizável. Não se pode mudar a natureza humana! Esta é a mais comum e contundente de todas as objeções feitas ao socialismo. É o primeiro argumento que aparece no local de trabalho, na rua ou no bar. É o argumento diante do qual muitos intelectuais e políticos recuam. Também é um argumento aceito por muitos que gostariam sinceramente de ver uma sociedade melhor, mas não conseguem acreditar que isso seja possível. É inclusive aceito por gente que se considera socialista.

O efeito resultante é o abandono do ideal socialista em troca de uma reforma superficial do sistema. É a renuncia de tentar mudá-lo a fundo. O argumento da natureza humana pode parecer muito útil aos que se opõem ao socialismo, pois é curto, preciso e incisivo. Uma resposta de uma só frase que aparentemente encerra a discussão, e que traz junto outros tópicos: "sempre deverá haver gente governando", "as pessoas são naturalmente egoístas", "sempre haverá quem queira ter mais que os outros", "as revoluções sempre acabam mal e conduzem à tirania".

O argumento se alimenta da velha idéia cristã segundo a qual todos nascemos com o pecado original herdado através de gerações, desde Adão e Eva no jardim do Éden. A noção de que há uma falha elementar na natureza humana que torna impossível a genuína igualdade e a cooperação entre as pessoas parece proporcionar uma explicação perfeita para muitos dos males do mundo, como o racismo e o sexismo. Questões políticas específicas como a degeneração da revolução russa na ditadura de Stalin, e o fracasso aparente do socialismo na Europa do leste e na China são atribuídas à natureza humana.

Essas idéias parecem comprovadas pela experiência pessoal de praticamente todo mundo. Quem já não viu alguém competindo desesperadamente em busca de uma promoção, ou não se decepcionou com um amigo? Essas experiências ajudaram a elevar o argumento da natureza humana à categoria de "senso comum". Entretanto, veremos por que ele é completamente falso.

A natureza humana se transforma

Por quê se diz que a natureza humana sempre fará o socialismo impossível? Argumenta-se que há uma série de características, de formas de comportamento e de atitudes básicas que são comuns a todos ou praticamente a todos os seres humanos, e que estes são incompatíveis com a conquista de uma sociedade sem classes, baseada na propriedade comum e no controle coletivo.

Em particular, se sustenta que a maioria das pessoas seja inerentemente insaciável e ambiciosa. De tal maneira que querem mais do que lhes corresponderia em uma repartição justa de bens materiais, e aspiram ao domínio sobre os demais.

Qualquer exame de como se comportam as pessoas em nossa sociedade nos mostra que tal argumento está equivocado. Certamente há muitos exemplos de avareza e ambição. Basta pensar nos inumeráveis políticos e magnatas corruptos como Fernando Collor, João Alves, Paulo Maluf, Odebrecht .

Mas há também pessoas que arriscam suas vidas pelos outros: oito metalúrgicos foram assassinados pelo exército durante a greve de Volta Redonda em 1988; em 1989 estudantes e trabalhadores permaneceram firmes na praça de Tiananmen (na China) diante dos tanques que os ameaçavam. Além disso encontramos exemplos na vida cotidiana: pais que dedicam suas vidas para cuidar de seus filhos deficientes, trabalhadores que, desinteressadamente, optam por trabalhar em serviços sociais quando poderiam ganhar salários melhores em escritórios ou fabricas, a atitude generosa de muitas pessoas diante da pobreza e das necessidades sociais...

Quando se tratam temas como a assistência sanitária gratuita, os mendigos, as aposentadorias na terceira idade e as ajudas aos pobres, a opinião pública é majoritariamente generosa e caridosa. Enquanto a moral dos políticos aparece cada dia mais suja há gente disposta a lutar com uma atitude de desinteresse e solidariedade.

Inclusive quando os governos planejam as guerras imperialistas mais cruentas e vorazes, estão conscientes de que para conseguir o apoio do público eles têm que vendê-las proclamando um motivo decente.

Os britânicos justificaram sua intervenção na Primeira Guerra Mundial declarando que iriam resgatar a desvalida Bélgica. A mesma desculpa serviu como pretexto na Guerra do Golfo. Desta vez foi o desvalido Kuwait, quando o que realmente estava em jogo era o petróleo.

Não citamos estes exemplos com a intenção de demonstrar que a natureza humana seja inatamente generosa. Mas queremos deixar claro que é absurdo dizer que as pessoas são inatamente avarentas, especialmente quando falamos da sociedade capitalista, onde cada passo anima a avareza, a competição e a ambição.

De fato, uma pessoa não é inatamente boa o má. Uma pessoa é, ao mesmo tempo egoísta e generosa, covarde e corajosa, exigente e coibida. Há indivíduos que sacrificariam tudo por suas famílias mas não levantariam um dedo por sus vizinhos. Há outros que doam generosamente para obras de caridade, mas fazem seus filhos passar privações. Algumas pessoas têm uma simpatia sem limites pelos animais, mas têm pouca consideração com os seres humanos, enquanto outras fazem tudo ao contrário.

Tudo depende das circunstâncias. Depende de se a gente se sente vulnerável e ameaçada ou forte e segura de si mesma. Depende das atitudes com as quais uma pessoa tenha crescido e se formado ao longo de sua vida. Em poucas palavras, as pessoas mudam quando suas condições de vida e experiências mudam. Se isto é válido para os indivíduos, a história mostra que o é inclusive ainda mais para as sociedades e as classes sociais. O exemplo da Revolução Russa, cujo resultado parece comprovar a inalterabilidade da natureza humana, na verdade demonstra o contrário.

Durante séculos o povo russo sofreu e foi oprimido pela tirania dos czares. Era a terra da mais profunda ignorância e superstição, das atitudes mais atrasadas em relação às mulheres e do anti-semitismo más forte. Um observador superficial poderia pensar que existia algo profundo na natureza do povo russo que lhe permitia suportar essa situação (diferentemente dos "amantes da liberdade" da Europa ocidental, por exemplo).

Em 1905 e com mais força ainda em 1917, esse mesmo povo russo se sublevou contra o czarismo. Fizeram greves e manifestações, lutaram e se insurgiram; fizeram a maior revolução da história da humanidade.

Esta revolução pretendia mudar o mundo: tomou as fábricas, repartiu a terra aos camponeses, livrou a Rússia da guerra imperialista, concedeu o direito à autodeterminação das minorias nacionais, decretou a completa igualdade legal da mulher, elegeu um judeu (Leon Trotski) como presidente de seu principal conselho operário e o colocou à cabeça de seus exércitos revolucionários.

Ao nosso observador lhe pareceria ver agora a natureza do povo russo queimando com ardor selvagem, outra vez muito diferente da moderada natureza européia. Nos anos 20 e 30, a revolução foi abatida pela burocracia estalinista que esmagou operários e camponeses, condenou milhões de pessoas à fome e outras tantas milhões à morte nos campos de trabalho forçado na Sibéria. Agora o nosso expert do caráter russo veria tudo como a confirmação da tendência inata russa à tirania.

Na realidade a "natureza" do povo russo - suas atitudes coletivas, psicologia e formas de comportamento, as quais de qualquer modo diferiam segundo as classes sociais - mudou profundamente, com as transformações das circunstâncias concretas.

O longo reinado dos czares com a sua psicologia servilista se apoiava no extremo atraso da economia russa. A queda do czar e o apogeu do entusiasmo revolucionário teve suas raízes no desenvolvimento do capitalismo russo, com uma débil classe capitalista diante de uma poderosa classe trabalhadora capaz de agrupar junto a ela as massas camponesas.

O colapso da revolução, a vitória do estalinismo e o aparente regresso à apatia, resignação e docilidade, foi um produto do isolamento, do fracasso da revolução européia e a destruição quase total da classe trabalhadora russa na terrível guerra civil de 1918-1921.

Quando mudaram as circunstâncias mudou a "natureza". Podemos extrair esta conclusão do estudo de 20 anos da história russa, e podemos chegar também a ela estudando a história da humanidade.
Formas de comportamento que são aceitas como naturais e eternas por sociedades particulares em períodos históricos particulares, são rechaçadas como completamente "anti-naturais" por outras sociedades em outros períodos.

Para a maioria no século XVII a escravidão negra parecia uma regra perfeitamente natural: procedia da inferioridade natural inerente dos negros. Até a metade do século XIX, entretanto, a escravidão passaria a ser vista por uma ampla maioria como uma violação da natureza humana. Nos EUA esses dois pontos de vista sobre a natureza e os direitos dos negros coexistiram: um predominava no norte e o outro no sul.

Para o índio norte-americano a propriedade privada da terra era anti-natural. Para o latifundiário do século XVIII era o direito humano mais básico. Para os gregos antigos, a homossexualidade era a forma de amor sublime. Para os vitorianos ingleses era degradante. Para o hindu tradicional os matrimônios de conveniência foram norma durante séculos. Para a maioria da sociedade ocidental atual é algo anti-natural. Modificar as condições sociais é modificar a "natureza humana".

Poderíamos dar muitos outros exemplos. Fica assim manifesto a natureza cambiante das atitudes humanas, da moralidade e do comportamento, e o papel determinante da cultura na vida humana; o que se aprende socialmente é muito mais do que o herdado geneticamente. Vemos também como a cultura evolui seguindo as mudanças das circunstâncias materiais.

Que é a natureza humana?

As pessoas mudam quando mudam suas circunstâncias. Mas isso significa que não exista em absoluto uma "natureza humana"? Às vezes os socialistas se vêem tentados a apoiar esta afirmação como uma maneira rápida de combater o argumento anti-socialista.

Mas é muito problemático negar absolutamente a existência de uma "natureza humana".

Em primeiro lugar isso poderia dar a entender que os seres humanos são totalmente manipuláveis, que um regime totalitário que controle completamente os meios de comunicação e a educação infantil seria capaz de fazer o que quisesse das pessoas, e que portanto eliminaria qualquer possibilidade de revolta. É evidente que isto não é assim. Nem na Alemanha de Hitler nem na Rússia de Stalin - os dois regimes mais totalitários que já existiram - se pôde suprimir toda resistência ou todo pensamento. Inclusive nos campos de concentração, houve resistência.

Existe sempre um limite para o poder do Estado de lavar o cérebro, e esse limite se alcança quando, entre outras coisas, a opressão do Estado entra em conflito com as necessidades básicas das pessoas.
Em segundo lugar, sugerir que não existe a natureza humana implica que não há características comuns compartidas pelos seres humanos que os diferenciem de outros animais. Isto não é, obviamente, assim. Se fosse assim não seria possível falar nem de espécie humana nem de história humana.

Então que se pode dizer sobre a natureza humana? Devemos começar falando de biologia?

Está claro que os seres humanos são uma espécie biológica distinta, que possui um código genético específico. Esse código genético determina a estrutura física básica dos seres humanos.

É claro que esta natureza biológica não é fixa nem eterna. Mas a escala temporal da evolução é extremadamente lenta e de uma ordem completamente diferente da escala temporal do desenvolvimento histórico. Biologicamente os seres humanos de hoje em dia não são substancialmente diferentes dos seres humanos de 10.000 o até 20.000 anos atrás. Mas para o tema que nos ocupa, a possibilidade do socialismo, a natureza física do ser humano pode ser considerada como constante.

Essa natureza física dota a os seres humanos de certas necessidades e capacidades comuns que são a base da natureza humana.

As necessidades mais fundamentais e indiscutíveis são o ar, a comida e a água, e a seguir o vestuário, a moradia e o calor. Existe a necessidade de sono, de algum tipo de cuidado para com os filhos (já que os seres humanos, ao contrário de outras espécies animais, tardam vários anos para terem a mínima auto-suficiência), da sexualidade para propagar a espécie, etc.As capacidades incluem os cinco sentidos, um cérebro grande, a possibilidade de andar reto, uma mão que permite operações precisas, cordas vocais que permitem a fala, etc. Pode-se objetar que nem todos possuem essas capacidades - alguns nascem cegos, surdos ou deficientes de várias maneiras - mas estas são exceções específicas.

Estas necessidades e capacidades, compartilhadas por todas as pessoas em todas as sociedades de todos os tempos durante os últimos 20-30.000 anos constituem os primeiros elementos definidores da natureza humana.

Contudo, é a maneira particular em que essas capacidades são usadas para satisfazer as necessidades que diferencia os seres humanos de todas as outras espécies. Os seres humanos satisfazem suas necessidades trabalhando juntos para produzir sistematicamente os meios de subsistência.

Os animais, certamente, também trabalham: os esquilos acumulam nozes, os leões caçam, os castores constróem represas, os pássaros constróem ninhos, as formigas constróem moradas, alguns símios chegam a aprender a utilizar paus como ferramentas, etc.

Mas o trabalho humano se converteu gradualmente em algo qualitativamente mais avançado. A produção sistemática e consciente de ferramentas - os meios de produção - incrementou enormemente o poder produtivo do trabalho.

Enquanto o trabalho animal permanece predominantemente instintivo e portanto repetitivo durante gerações, o trabalho humano é aprendido e desenvolvido. A princípio lentamente, mas alcança uma rapidez progressiva.

O trabalho animal deixa o meio praticamente inalterado ou modifica-o apenas superficialmente, mas o ser humano transforma-o progressivamente.

O caráter social do trabalho possui também uma importância fundamental. Foi o filósofo grego Aristóteles, quem caraterizou o homem como um "animal social", e de fato os seres humanos sempre viveram em grupos, nunca como indivíduos isolados.

Da mesma maneira seu trabalho sempre foi social e cooperativo desde o princípio dos tempos. Por exemplo, quando os seres humanos da Idade da pedra saíam para as grandes caçadas, iam coletivamente em bandos ou grupo nômades.

Com toda probabilidade foi esse trabalho de colaboração que determinou outra característica básica dos seres humanos, o desenvolvimento da linguagem. Todas as sociedades humanas conhecidas alcançaram um nível de complexidade lingüística considerável. O idioma é decisivo no desenvolvimento da consciência social. Através dela a cultura pode ser aprendida e transmitida de geração em geração.

Podemos agora resumir as principais características da natureza humana. Os seres humanos são uma espécie biologicamente distinta com certas necessidades básicas comuns que se satisfazem através do trabalho social coletivo, o qual conduz ao desenvolvimento da linguagem, da consciência social e da cultura.

O ponto chave nesta definição de natureza humana é que ao mesmo tempo em que afirma algumas continuidades importantes, também apresenta um elemento dinâmico na forma do trabalho social.

Quando os seres humanos transformam seu ambiente também se transformam a si mesmos e as suas relações com os demais; ao exercitar sua capacidade para satisfazer suas necessidades, suas capacidades se incrementam e se desenvolvem: "com o comer vem o apetite", como disse Marx. Quando certas necessidades básicas estão satisfeitas, essas necessidades se ampliam e aparecem outras novas. A necessidade de comer como tal se converte em uma necessidade de comer com uma certa qualidade. A necessidade de vestir-se se transforma de uma necessidade de cobrir-se de peles a uma necessidade de adquirir dinheiro para comprar roupas nas lojas.
No momento em que a forma de produção muda também muda a organização da sociedade. Quando passamos da caça e a coleta à agricultura e desta à manufatura e a indústria, passamos também do pequeno clã nômade à aldeia, à cidade e à nação moderna. No processo o comportamento e as atitudes se transformam radicalmente. Como disse Marx no Manifesto Comunista:

"com cada modificação nas condições de vida, nas relações sociais, na existência social, mudam também as idéias, as noções e as concepções, em uma palavra, a consciência do homem". Não só a natureza humana não é imutável, mas também a capacidade para a mudança e o desenvolvimento é uma parte essencial da natureza humana. Esse é um dos pontos chave que distingue os seres humanos dos demais animais.

Um a questão final: essa natureza que acabamos de descrever é fundamentalmente boa ou má? Nem uma coisa nem outra. O significado básico de "bom" é o daquilo que serve à natureza humana para satisfazer suas necessidades e facilitar seu desenvolvimento. O significado básico de "mau" é aquilo que dificulta o desenvolvimento da natureza humana e a satisfação de suas necessidades.

Esta é a razão de que a consideração de "bom" e "mau" se transforme segundo os períodos históricos. As circunstâncias mudam, as necessidades das pessoas mudam e também a sua moralidade. O mesmo sucede com as distintas classes sociais em cada momento histórico: suas condições de vida diferem, seus interesses são opostos e portanto desenvolvem moralidade diferentes.

Capitalismo e natureza humana

Como todas as coisas, o sistema econômico capitalista está sempre mudando. O capitalismo de hoje é muito diferente do capitalismo da época de Karl Marx e Dom Pedro II.

Quando Marx escreveu o Manifesto Comunista em 1848, o capitalismo estava estabelecido plenamente apenas em parte da Europa ocidental e no norte da América. Hoje domina o mundo inteiro. Em 1848 as principais unidades de produção capitalista eram fábricas de pequena dimensão em mãos de indivíduos ou famílias. Hoje o capitalismo está dominado por multinacionais gigantes como a Exxon, Ford ou IBM.

Quando Engels escreveu As condições da classe trabalhadora inglesa em 1844, os trabalhadores de Manchester, inclusive as crianças, trabalhavam entre 12 e 14 horas diárias por uns míseros trocados. Viviam em casas que eram pouco mais que buracos no chão. Hoje os trabalhadores melhoraram sua situação consideravelmente, mas condições de trabalho e de vida tão ruins ou piores se podem encontrar na China, Índia ou no Brasil.

Apesar destas e de outras mudanças, podemos assinalar algumas características fundamentais que definem o sistema econômico capitalista:


1. Os meios de produção chaves ( como fábricas, terra, maquinário e transporte) são propriedade ou são controlados efetivamente por uma pequena minoria da população: os capitalistas.
2. O acesso ao controle e à propriedade dos meios de produção está vedado para a grande de maioria da população e assim as pessoas se vêem obrigadas a vender a sua capacidade de trabalho, conhecida como força de trabalho, aos capitalistas. Ademais são obrigadas a vendê-la em condições que permitam aos capitalistas extrair um excedente ou lucro em seu proveito.
3. Os meios de produção estão distribuídos entre diferentes capitalistas (indivíduos, grupos ou Estados capitalistas), e isto provoca a concorrência entre eles. A causa da concorrência é o lucro. A concorrência contínua pelo lucro leva os controladores de cada unidade capitalista a explorar ao máximo os seus trabalhadores.


Os partidários do capitalismo argumentam sempre que de alguma maneira isso corresponde à "natureza humana". Havia um elemento de verdade nesse argumento quando o capitalismo emergiu como um sistema que oferecia uma capacidade maior do que o sistema anterior, o feudalismo, para satisfazer as necessidades básicas de alimentação e alojamento. Mas atualmente isso não passa de um absurdo.

Em primeiro lugar é absurdo dizer que é "natural" ou "instintivo" que as pessoas se comportem de uma maneira capitalista quando se chegou ao capitalismo somente após 2 milhões de anos de evolução humana. Nem o intercâmbio de mercadorias em geral nem a compra e venda da força de trabalho (a característica central do capitalismo) aparecem em parte alguma nas primeiras fases da história humana.
Pelo contrário, a história demonstra que as pessoas se viram obrigadas a vender sua força de trabalho e a trabalhar para um empresário somente quando se viram privadas pela força de qualquer possibilidade de ganhar a vida trabalhando para si mesmas.

A emergência de uma classe com riqueza suficiente para investir na indústria e comprar a força de trabalho em grande escala exigiu um processo brutal que Marx chamou de "acumulação primitiva de capital". Essa acumulação se fez às custas da escravidão de milhões de africanos e seu transporte às Américas, o genocídio de uma grande parte da população indígena das Américas central e do sul, a espoliação e empobrecimento da Índia e do extremo Oriente e de outras inumeráveis barbaridades.

Ademais, para o capitalismo e a classe capitalista estabelecerem seu domínio tiveram que desenvolver uma série de lutas revolucionárias violentas e guerras civis contra a antiga aristocracia feudal. Isso incluiu a decapitação de reis na França e Inglaterra. Portanto podemos dizer que não há nada de "natural" no desenvolvimento do capitalismo.

Tampouco é certo que o capitalismo faça do interesse dos indivíduo as força motivadora da produção. A força motivadora da produção capitalista é o lucro. Mas os lucros só existem para uma pequena minoria da sociedade que possui o capital. Para a grande maioria dos indivíduos o capitalismo representa a negação de seus interesses. Por esse motivo os capitalistas sempre estão instando os trabalhadores a não serem egoístas. Os empresários sempre tentam fazer leis que restringem a capacidade dos trabalhadores para perseguir seus próprio interesses através de seus sindicatos.

Longe de ser uma expressão da natureza humana, o capitalismo toma e distorce profundamente a característica mais distintiva e importante da natureza humana - a capacidade para o trabalho.

O capitalismo torna o trabalho alheio ao trabalhador, utiliza a força de trabalho como uma mercadoria para ser comprada e explorada. Em vez de ser o meio através do qual os seres humanos transformam conscientemente a natureza para satisfazer as necessidades coletivas e individuais, o trabalho se transforma simplesmente no meio necessário para ganhar o dinheiro que lhes permita a sobrevivência social.

Os trabalhadores perdem todo controle sobre seu próprio trabalho, o qual se vê reduzido a uma tarefa pesada, vazia, entorpecedora, que destrói física e psicologicamente o trabalhador. O resultado é que a maioria das pessoas, com raras exceções, passam 40 ou 50 anos de suas vidas em um trabalho que odeiam, que apenas toleram e que lhes inflige um cansaço e um dano muito profundos.

O capitalismo até mesmo nega a possibilidade de trabalho a um grande número de pessoas e as jogam nas ruas quando o seu trabalho deixa de produzir lucros suficientes. Assim algo que está na essência do ser humano, já desde aqueles caçadores-coletores - a oportunidade de participar em um trabalho social útil - é hoje negado a milhões de pessoas.

A alienação do trabalho não afeta apenas o âmbito do trabalho, também influi em toda as relações sociais. As relações entre os próprios trabalhadores, entre pais e filhos, homens e mulheres, as relações amorosas e sexuais se vêem também distorcidas.

As pessoas se tratam entre si como objetos e mercadorias que se usam e se manipulam. O sexo se transforma em mercadoria e é utilizado para vender outras mercadorias. Freqüentemente os indivíduos mais oprimidos e alienados buscam compensar no local de trabalho ou na sociedade em geral a sua falta de poder e opressão abusando de outros ainda mais vulneráveis.

Nada disso é natural, nem é produto da natureza humana. É o produto de um sistema que viola a natureza humana.

Finalmente, o capitalismo resulta atrozmente inadequado para a satisfação das necessidades básicas dos seres humanos: a necessidade de água, comida, vestuário e alojamento. Cada ano a produção de alimentos supera o crescimento da população e são acumulados enormes "lagos de vinho" e "montanhas de bifes". Contudo, centenas de milhões de pessoas passam fome e dezenas de milhões morrem de fome. Multidões de pessoas sofrem e morrem de enfermidades que são facilmente preveníveis. Nos países ricos do Ocidente existem recursos para construir hotéis e escritórios de luxo. E no entanto muitas pessoas se amontoam nas calçadas das ruas porque não têm uma cama para dormir.

Nada disso é natural, e nem é algo imposto pela natureza humana. Os chamados "primitivos" do Kalahari são capazes de obter uma dieta melhor caçando e coletando em zonas semidesérticas do que os milhões que morrem da fome provocada pelo mercado ou que mal vivem nas margens das grandes cidades do mundo. Os Inuit no polo norte são capazes de construir refúgios de gelo mais aconchegantes e cálidos do que a gente que faz leitos de papelão e jornais para dormir nas calçadas do centro de São Paulo.

Estas barbaridades ocorrem porque o capitalismo determina que a prioridade de cobrir as necessidades vitais dependa do poder aquisitivo, ao mesmo tempo em que priva um grande número de pessoas desse poder aquisitivo.

Em sua busca incansável de lucros, o capitalismo contamina o ar e a água e ameaça o meio ambiente que permite e sustenta a vida humana.

Socialismo e natureza humana

Se do ponto de vista da natureza humana o capitalismo demonstra claramente sua bancarrota, o que podemos dizer desse mesmo ponto de vista do socialismo?

Se aceitamos a existência de ao menos uma natureza humana básica, não será possível que nela esteja enraizada profundamente alguma característica que impossibilite a conquista de uma sociedade autogovernada e sem classes na qual todos sejam iguais e livres? Existe por acaso um desejo fundamental de poder, uma necessidade de domínio que condena a sociedade à eterna divisão entre governantes e governados? É possível que a existência de desigualdades físicas naturais entre indivíduos constitua um obstáculo à igualdade social?

Podemos dar uma resposta objetiva e simples a estas e outras questões semelhantes: durante dezenas de milhares de anos, para não dizer centenas de milhares, os seres humanos viveram em sociedades sem propriedade privada, divisões de classe, governantes ou Estados.

O testemunho arqueológico mostra que as primeiras ferramentas feitas a mão - a pedra de sílex - datam de algo ao redor de 2.5 milhões de anos. Desde então até o desenvolvimento da agricultura há dez mil anos viveram primeiro como coletores ocasionais, e depois como caçadores e coletores organizados em pequenos grupos nômades na maioria dos casos.

Durante esse período não se cultivava a terra, não existia a cerâmica, nem qualquer meio de transporte. Não era possível para a comunidade nem para os indivíduos que a compunham acumular um excedente de produtos além do necessário para a subsistência diária.
Ao não existir tal excedente, não pode existir tampouco divisão alguma da sociedade em classes, nem estamento ou casta vivendo do trabalho dos demais. Tampouco pode existir um Estado com governantes permanentes que dispusessem de corpos especiais de homens armados à sua disposição para manter o poder. Todos estavam envolvidos na produção do necessário para a subsistência. Assim durante 99% do tempo em que os seres humanos têm habitado o planeta viveram em comunidades sem classes.

A existência de sociedades sem classes não é apenas um assunto de estudo arqueológico ou de dedução lógica. Povos de caçadores, coletores sobreviveram até pouco tempo com uma forma de vida similar, de tal maneira que puderam ser estudados por antropólogos modernos.

Um bom exemplo são os !Kung San do Kalahari no sul de África que foram estudados de perto por antropólogos, especialmente pelo norte-americano Richard Lee.

Os !Kung vivem no deserto do Kalahari há pelo menos dez mil anos. Vivem em pequenos grupos de cerca de trinta pessoas, e translada seus acampamentos a cada par de semanas. Acumulam muitas poucas cosas materiais, unicamente o que podem levar com eles quando se mudam. Possuem, entretanto, uma rica cultura oral. Um conhecimento profundo de seu meio ambiente lhes permite conseguir um nível de vida diário razoável. A comida caçada ou coletada é compartilhada coletivamente pela comunidade. Lee escreve:
O ato de compartilhar impregna profundamente o comportamento e os valores dos !Kung,dentro da família e entre as famílias. Assim como o princípio de lucro e racionalidade é consubstancial à ética capitalista, o de repartir o é à conduta social em sociedades coletoras.

Os !Kung são muito igualitários. Não só não possuem uma divisão entre ricos e pobres, como também não possuem chefes ou líderes. Uma vez Richard Lee perguntou se os !Kung tinham líderes. "É claro que temos líderes," responderam, "na verdade somos todos líderes, cada um de nós é um líder sobre si mesmo."

Sintetizando as lições de seu estudo sobre os !Kung e seu conhecimento de outras sociedades caçadoras e coletoras Richard Lee escreve:

"O fato de que a repartição comunitária de recursos alimentícios tenha sido observada diretamente em anos recentes entre os !Kung e em dezenas de outros grupos de coletores
constitui um achado que não deveria ser subestimado. Sua universalidade significa um forte
suporte à teoria de Marx e Engels sobre uma fase de comunismo primitivo que precedeu a aparição do Estado e a divisão da sociedade em classes... Uma verdadeira vida comunal é freqüentemente descartada como um ideal utópico aceitável em teoria mas inalcançável na prática. Mas o estudo destas comunidades coletoras evidencia o contrário. Uma maneira de
viver igualitária não só é possível mas de fato existiu em muitos lugares do mundo e durante
longos períodos de tempo."

Com isso não se pretende sugerir que as pessoas dessas sociedades se encontrem em "um estado de natureza socialista" ou que a natureza humana é "essencialmente socialista". Isso seria simplesmente o reverso do argumento anti-socialista, repetindo o mesmo erro básico.

Na realidade o tipo de vida dos caçadores coletores foi o resultado de uma longa evolução cultural, e muitas de suas características principais, inclusive a de compartilhar, tiveram que ser socialmente aprendidas e reforçadas culturalmente.
Como Richard Lee comenta apropriadamente: "cada bebê humano nasce dotado da capacidade de compartilhar e da capacidade de ser egoísta". Contudo, a evidência antropológica demonstra sim que a natureza humana e o socialismo não são de forma alguma incompatíveis.

O socialismo moderno promete muito mais que a simples compatibilidade com a natureza humana. O socialismo de hoje não significa um regresso às condições do comunismo primitivo, mas um avanço enorme baseado nas conquistas tecnológicas alcançadas em milhares de anos de sociedade de classes.

O comunismo primitivo esteve baseado na ausência de qualquer excedente acumulado. O socialismo moderno se baseia no fato de que as forças produtivas foram desenvolvidas até um ponto em que há suficiente excedente para assegurar uma vida digna para todos sem que as pessoas devam consumir sua existência em um trabalho penoso.

Socialismo hoje significa tomar posse da imensa riqueza, da capacidade produtiva e da ciência e tecnologia monopolizadas atualmente pelas multinacionais, pelos capitalistas riquíssimos e seus Estados, submetendo-as a um controle democrático e coletivo em escala internacional.

Isto asseguraria a alimentação, e o vestuário para todo o mundo e o fim da pobreza e da fome. Nesse processo se uniria a raça humana, se acabaria com a exploração, com os antagonismos nacionais, com a guerra, o racismo e a opressão sexual, ao desaparecer as circunstâncias materiais que os sustentam.

As pessoas realizariam o controle coletivo de seu próprio trabalho e dos produtos de seu trabalho. Assim se superaria a alienação e a distorção da natureza humana que tem persistido ao largo de milhares de anos de escravidão e servidão, e que culminou no trabalho capitalista assalariado.

Assim se transformariam e libertariam as relações pessoais e sociais; se produziria um ambiente adequado para satisfazer as necessidades humanas e facilitar o desenvolvimento humano. Seria possível planificar racionalmente os efeitos da atividade humana sobre a natureza e portanto por fim à destruição incontrolada do meio ambiente.

Uma característica fundamental da espécie humana é a criatividade artística. A gravação mais antiga do mundo tem 300.000 anos. Cada sociedade humana possui sua própria música e dança.

Sob o capitalismo, como sob todas as sociedades de classe, a atividade artística é um campo reservado para uns poucos privilegiados. A criatividade da maioria se vê frustrada e esmagada. O socialismo liberará esta criatividade com a generalização da educação e do acesso ao tempo livre, restaurando assim o elemento artístico na produção. E isto dará lugar a um grande florescimento cultural.

Assim, o socialismo não só satisfará as necessidades materiais básicas comuns a todos os seres humanos, mas também trará consigo um desenvolvimento, enriquecimento e engrandecimento da natureza humana. Isso não só é possível, como é necessário. E vale a pena lutar por ele.