Que Acontece nas Prisões Italianas?
Carlos Alberto Lungarzo
Anistia Internacional (USA)
MI 2152711
Aproveito para agradecer a Susanna Marietti, da Sociedade Italiana Antígone, por seu assessoramento na redação desta matéria.
Se Cesare Battisti fosse finalmente extraditado, ele seria destinado, com certeza, a uma prisão de alta segurança pelo resto de sua vida. A cínica condição colocada por alguns dos juízes que votaram em favor da extradição, lembrando orgulhosamente que as tradições brasileiras não permitem recolher um prisioneiro por mais de 30 anos, será, para as autoridades italianas, algo menos que papel higiênico de baixa qualidade. O ex ministro Mastella, o ministro La Russa e outros, já disseram aos familiares de supostas vítimas do condenado que “aquele palhaço passará a vida toda na cárcere”.
Isto pode ser uma questão puramente formal, porque, se tudo desse errado, na pior das alternativas (que eu não ouso nem pensar neste momento), Battisti teria a têmpera de não dar aos abutres daqui o prazer de entregá-lo vivo nem aos urubus da lá o prazer de caçá-lo. De qualquer maneira, é importante que todos saibam como são as condições de um preso na Itália atual.
Prisão Perpétua
O nome ergástolo, que é dado na Itália à punição por reclusão até o fim da vida, não foi adotado por acaso. É o mesmo nome que usaram os medievais, quando a língua oficial da nobreza era o latim, que por sua vez tirou esta palavra do grego: “ergástolo” quer dizer trabalho forçado, que era o castigo ao qual estavam submetidos, até pouco tempo atrás, os presos por vida. Note-se que na Itália é frequente usar nomes medievais e não modernos para os fatos relativos à vida prisional: a própria prisão é chamada “galere” inclusive em linguagem culta, não apenas como gíria, em homenagem aos tempos em que os presos morriam remando nos barcos (galere) sob as chicotadas dos mestres. Este homenagem à Idade Média nas prisões italianas poderia ser apenas um anacronismo de linguagem, mas não é: pelo contrário, é um sintoma de que o sentimento em relação com os internos é o mesmo, e de que as condições sob as quais vivem são quase iguais. De fato, são um pouco menos horríveis porque um choque elétrico é menos doloroso e mais reversível que um esquartejamento.
Não é verdade que a condena por vida repugne os sentimentos humanitários unicamente nos países mais avançados. Inclusive sociedades com longa tradição de violência e intolerância têm abolido esta macabra filha doentia da pena de morte. É verdade que países laicos humanistas, com extremo liberalismo e naturalismo, como Noruega, a máxima pena por qualquer crime não pode passar de 21 anos. No entanto, mesmo em estados que foram muito diferentes, e praticaram até épocas recentes grandes genocídios, como a Croácia, a Espanha e a Servia, os movimentos humanitários conseguiram colocar as penas de prisão por baixo de um limite de 30 ou ainda 25 anos, como em Portugal.
As autoridades italianas costumam dizer que a prisão por vida é apenas “virtual”, porque um prisioneiro que tenha cumprido 26 anos de prisão com boa conduta pode ganhar a liberdade. Mas, isso é falso. Existe uma eventualidade de que isso aconteça, mas os próprios advogados de prisioneiros desconhecem casos concretos em que tenha sido aplicado este benefício, e apenas podem dizer que ouviram falar. De maneira nenhuma consiste numa regra, e segundo os boatos, aos duas ou três vezes em que esta cláusula foi aplicada, foram necessários complexos trâmites e enormes esperas, desde que, obviamente, os casos de liberação aos 26 anos tenham realmente existido.
Por exemplo, Antonino Marano, internado na Carcere dell'Ucciardone, em Palermo, Sicília, já cumpriu 43 anos de prisão sem qualquer esperança de ver-se livre algum dia. Casos que excedem os 30 anos são muito comuns, e estão relatados numa carta que os condenados a prisão perpétua enviaram a Lula depois da outorga de refúgio a Battisti.
O Regime 41 bis
Itália é muito diferente do resto dos países formalmente democráticos no tratamento do crime político. Em todos esses estados, o crime político (mesmo que sua definição ofereça sempre algumas dificuldades sutis) é aquele que se faz por alguma convicção e não por interesse pessoal e, portanto, é tratado com certa maior gentileza que o crime comum. Até no Brasil, com sua tradição de barões, militares e escravocratas, o crime político merece algum trato diferencial, como se deriva da lei 9474/97, tão debatida nestes dias.
Na Itália é exatamente o contrário. Os mafiosos, salvo quando perdem a amizade com as autoridades, podem sair livres logo. Para um ladrão comum é mais difícil. Já um preso político pode passar anos num sistema brutal pelo mesmo crime.
O regime 41 bis tomou seu nome do artigo 41-bis do Ato Administrativo Prisional 354 (AAP354), que permite aplicar ao Ministro de Justiça ou do Interior uma forma de disciplina prisional que deixaria maravilhado a Meister Eymerich, o famoso inquisidor alemão do século 15. Antes de exagerar em nossa indignação, pensemos, porém, que uma selvagem e sádica forma de prisão semelhante ao 41 bis se aplica no Brasil com o nome de Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), que foi calorosamente defendida pelo críptico advogado Thomas Bastos (o primeiro ministro de justiça do presidente Lula) e resistiu todas as críticas de organizações de Direitos Humanos.
Talvez seja justo dizer que este RDD é mais parecido ao americano e, na prática, menos brutal que o italiano, e se aplica com menos freqüência. O AAP354 foi publicado no 26 de julho de 1975, uma época em que as Brigadas Vermelhas já eram ativas, mas ainda não tinham cometido os atos tipicamente terroristas de 1978, já sobre uma nova liderança da que se sempre se supus que tinha sido infiltrada pela polícia.
Nessa data, a primeira fase das BV estava quase acabada, pois seus principais núcleos tinham sido desmontados, e ainda não tinha surgido Prima Linea (o que aconteceria no ano seguinte), que foi novo pesadelo da repressão. O grande terrorismo (os stragi) produzido pelo operativo Gladio já existia desde 1969. Não é necessário dizer que o 41-bis não visava punir este tipo de terrorismo, pois seus realizadores não foram nem mesmo submetidos à justiça comum, salvo, nos últimos anos, alguns poucos que foram judicialmente poupados (salvo Vincenzo Vinciguerra, um terrorista fascista que assassinou três policiais e ganhou o ódio da corporação).
Outro detalhe interessante é que desde 1975 até 1992, um período relativamente longo, nunca as autoridades italianas se interessaram por aplicar este sistema á Máfia. Só em junho desse ano, quando foi assassinado o juiz Giovanni Falcone, o establishment entendeu que as sociedades criminosas tinham saído de sua habitual função história de ser parte complementar do sistema, e o sistema prisional do 41-bis foi aplicado a eles.
Portanto, quando o sistema foi inventado, em 1975, o objetivo não era combater nem a máfia, nem o terrorismo fascista, mesmo que fosse parcialmente. O sistema estava dedicado exclusivamente aos grupos revolucionários e aos movimentos sociais, que no ano de 1974 tinham estado enormemente ativos.
É fácil descrever o sistema 41-bis. Ele mantém o preso numa cela estreita, na qual pode ser sempre vigiado desde fora, sem absolutamente nenhum direito de praticar qualquer forma de recreação, atividade cultural, comunicar-se com outras pessoas mesmo por carta, telefone ou qualquer outro meio. Seu único “privilégio” é receber alimentação, atenção médica (se o prisioneiro morrer logo acaba a diversão de juízes, policiais e carcereiros), e uma visita por mês que pode variar de 10 a 30 minutos, através de um intercomunicador e vários painéis de vidro, de um familiar de primeiro grau.
Seria ridículo dizer que este sistema e desumano, porque animal nenhum vive nessas condições. O sistema é infrabiológico, um invento de mentes sádicas e maniqueístas que reproduzem as torturas medievais.
Repúdio do 41 bis
Em Novembro de 2007, a Corte Européia de Direitos Humanos condenou a Itália pelas condições brutais de prisão sob o sistema 41-bis. Este fato é notável, pois sendo Itália principal base da NATO, os organismos europeus tendem a preservá-la de críticas. Por unanimidade, a corte decidiu que o 41-bis violava os artigos 6 e 8 de Convenção Européia dos DH (o direito a ter um julgamento limpo e o direito à vida familiar e privada). Entretanto, a condenação não fala em torturas. Pela data da manifestação da Corte é quase certo que Itália estaria executando ações de tortura proxy em benefício da “guerra ao terror”, e o organismo europeu evitou levantar problemas políticos.
Entretanto, mesmo nos Estados Unidos, onde o tratamento de imigrantes ilegais é muito duro, alguns juízes das barras (equivalentes da OAB) de Califórnia e Texas se recusaram a entregar a Itália criminosos de alta periculosidade. Uma juíza de Los Angeles, que firma com a sigla D. D. Sitgraves, considerou que o tratamento do sistema 41-bis é uma forma sistemática e contínua de tortura.
Tortura
Em tempos recentes, a tortura tem sido associada com personalidades patológicas, e especialmente com sujeitos afetados de transtornos sexuais. No documentário experimental La Torture feito por um grupo de jovens franceses em 1972, para resumir informações sobre os torturadores de Argélia, se destaca este aspecto: O torturador é quase sempre místico, identifica o sexo com a maldade, e sua forma mais comum de relacionamento sexual é o estupro, pois isso lhe permite satisfazer-se fingindo de está “punindo” a sexualidade. O fato encontrou confirmação em algumas poucas pesquisas que puderam fazer-se com os torturadores da ditadura argentina. A personalidade do moderno torturador é compatível com a do torturador inquisitorial: seu maior objeto de ódio são pessoas fracas, mulheres, crianças, gays e membros de outras raças.
Apesar disso, mesmo nos países católicos como França, Espanha e Portugal, a tortura tem sido colocada no código penal. Na Europa, em diversas datas, a tortura foi considerada crime específico (independente de lesões, morte ou estupro) nos pequenos estados balcânicos, na Austria, Bélgica, Dinamarca, Estônia, Islândia, Letônia, Eslovênia, Eslováquia, todos os países escandinavos, a totalidade do Reino Unido, Holanda, Polônia, Alemanha, Suíça, Suécia, Hungria e Turquia. Também nos pequenos estados como Luxemburg.
Itália, como todos os países europeus assinou a convenção de Estrasburgo de 1987 sobre prevenção da tortura. Entretanto, ao ser um dos poucos países da região que não a considera crime, punir diretamente os torturadores não é possível.
Em 2008, os lugares onde se comprovaram mais frequentes atos de tortura aplicados contra detentos provisórios (pessoas detidas por falta de documentos, vadiagem ou pequenos furtos) são Gênova, Turim, Treviso, Velletri, Florença, Forli, Frosinone (a prisão onde esteve Battisti), Lecce, Livorno, Milano, Padua e Peruggia.
Raramente se relatou o uso de instrumentos especiais de tortura. Em geral, os tormentos aplicados são afogamento, chutes, pancadas e impactos com objetos quaisquer (panelas, garrafas, etc.) Os casos que conduzem a morte são investigados. Atualmente não há, porém, nenhum incriminado.
Segundo o informativo, “Horizontes restritos”, mesmo entre os que não estão sujeitos ao sistema 41-bis, o índice de suicídios é alto. De janeiro de 2000 a março de 2009, houve 501 suicídios entre internos de todo o país. Não se sabe que proporção corresponde a presos políticos.
Um comentário:
Hoje foi travada mais uma batalha no Supremo Tribunal Federal. A questão agora está nas mãos do Presidente da República. A ver...
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